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Riscofrenia ou o recalcamento da contingência

V Ciclo de Conferências ULP/Rivoli - Contingência e Necessidade


O primeiro quartel do século XXI tem sido fértil em reforçar a ideia de que não é possível eliminar a incerteza, a contingência ou o acaso, contrariando os devotos da calculabilidade e os aclamados instrumentos de previsão das sociedades contemporâneas. Uma sucessão de múltiplas crises - desde o mais inesperado ataque terrorista de Setembro de 2001, a crise financeira global de 2007-08 e a pandemia de covid-19 que irrompeu abruptamente em 2020 - insiste em relembrar a vulnerabilidade da humanidade, a inescapável imprevisibilidade das suas ações e decisões, e a intrínseca aleatoriedade do mundo natural.

Existe, no entanto, uma tendência hegemónica no uso do conceito probabilístico de risco, que o eleva a dogma central de certeza com base na imagem que oferece de suposta segurança e controlo sobre o aleatório e as contingências. O conceito de risco carrega a promessa de trazer ordem à imprevisibilidade do mundo natural e social através da lente das probabilidades, pelo que interpretar o mundo em termos de risco significa libertá-lo da ideia de que existem dinâmicas no mundo que não dependem do ser humano, avançar com previsões e sobretudo fundamentar uma cultura de controlo e gestão por parte das instâncias decisórias.

Na presente comunicação, proponho o conceito de riscofrenia para designar esta tendência - no fundo, um recalcamento da incerteza. No mesmo passo, critico o uso inflacionado da noção de risco e a falácia de eliminação do acaso, pois sabe-se que essas tentativas são inglórias, negligenciam os princípios prudenciais, e podem produzir novas imprevisibilidades e incertezas. As análises de risco não permitem questionar os fundamentos da própria visão instrumental que impregna vários desenvolvimentos da modernidade. Não só se adaptam ao modelo que produz esses problemas como também os legitima, justifica e ratifica. É preciso ler a realidade como um todo feito de interações, em que algumas podem ser adequadamente formuladas, compreendidas e até previstas, e outras surgem numa mistura aleatória e indeterminada. O culto pelo conceito de risco tende a subsumir a incerteza, a fazer esquecer que a contingência existe, a converte-la em fórmulas matemáticas que permitem amenizar a dificuldade de lidar com ela ou a enfrentar o medo que domina a vida quotidiana. Torna-se, pois, crucial refletir sobre os pressupostos subjacentes a uma leitura da realidade a partir do risco ou a partir da incerteza/contingência, e sobre o que aceitamos, toleramos ou recusamos fazer nessas bases.

Convidada
Helena Mateus Jerónimo é doutorada pela Universidade de Cambridge, Reino Unido, e docente no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade de Lisboa. É investigadora do Advance/CSG (Investigação em Ciências Sociais e Gestão). Os seus interesses de investigação têm incidido na área dos estudos sociais de ciência e tecnologia, risco e incerteza, ambiente e sustentabilidade, e gestão de recursos humanos “verde” e comportamento organizacional. A par dos artigos científicos nestas áreas, destacam-se os livros Queimar a Incerteza: Poder e Ambiente no Conflito da Co-Incineração de Resíduos Industriais Perigosos (Imprensa de Ciências Sociais, 2010) e Jacques Ellul and the Technological Society in the 21st Century (Springer, 2013, em co-edição). Atualmente é Head of Community Engagement do PRME Chapter Iberia (Principles for Responsible Management Education) da ONU e membro da COMEST (Commission on the Ethics of Science and Technology) da UNESCO.

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Tuesday, May 31, 2022 00:00
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Ciências Sociais e Humanas
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