Rui Ribeiro debruça-se sobre o "Relatório Draghi" de 2024, elucidando sobre a inércia europeia que contrasta com a ação das grandes potências mundiais
13.10.25 - 15h18
Rui Ribeiro
O "relatório Draghi" transformou-se numa espécie de troféu intelectual: todos concordam com ele, todos citam as suas recomendações, mas ninguém o coloca em prática.
Há pouco mais de um ano, Mário Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu e uma das vozes mais respeitadas da política e da economia europeia, entregava à Comissão Europeia um diagnóstico que muitos qualificaram de "necessário" e "pertinente". Um documento que apontava caminhos para reforçar a competitividade da Europa, simplificar a sua máquina burocrática e criar condições para não ficarmos definitivamente para trás face aos Estados Unidos e à China.
Na altura, as juras de amor foram intensas. Governos, responsáveis comunitários, comentadores e até empresários não pouparam elogios. O relatório de Draghi foi recebido como uma visão corajosa, quase um manifesto europeu para enfrentar o século XXI. Mas, como tantas vezes acontece em Bruxelas, o entusiasmo ficou-se pelas palavras. Um ano depois, o relatório continua onde sempre esteve: na gaveta das boas intenções.
A analogia com Cervantes é inevitável. Draghi surge aqui como o Dom Quixote moderno, um homem que sonhou alto, ousou enfrentar os moinhos de vento da burocracia europeia e acreditou que seria possível quebrar o feitiço da procrastinação institucional. Mas, tal como na obra-prima espanhola, também aqui o herói foi recebido com admiração e e compaixão — e nunca com verdadeira ação. A Europa cumpriu o ritual da paixão platónica: juras de amor eterno, promessas de compromisso, olhares cúmplices. Mas, no que conta, ficou-se pelos beijos na face. Um ano depois, não houve beijo na boca e "a cama" ficou a quilómetros de distância, ou seja, não houve ação.
A ironia é dolorosa. Enquanto se falava de urgência, de simplificação e de investimento estratégico, a máquina comunitária continuou a funcionar com o seu ritmo habitual: lento, difuso, cheio de relatórios, consultas públicas e compromissos vagos. Os outros blocos — os Estados Unidos, a China, e até várias economias emergentes — foram à frente, transformando palavras em políticas, projetos em realidades, concordemos ou não com eles. Exemplo disso é o caso das famosas taxas de Trump. Ele disse e executou (uma vez mais retiro: concordemos ou não!). A Europa, pelo contrário, continuou a dançar em torno do seu próprio reflexo, sempre a prometer que "daqui a uns anos" haverá avanços, continuando na linha "engana-me que eu gosto", até um dia (veja-se o caso de França que não assume que o mundo mudou e nem Obelix conseguiria governar aquela aldeia gaulesa).
Von der Leyen chegou a admitir a necessidade de maior rapidez, mas a verdade é que pouco ou nada mudou. O "relatório Draghi" transformou-se numa espécie de troféu intelectual: todos concordam com ele, todos citam as suas recomendações, todos o utilizam como argumento em discursos..., mas ninguém o coloca em prática. É a paixão adolescente que nunca chega ao ato, feita de promessas inflamadas e gestos teatrais, mas sem consequências.
O problema é que o mundo não espera. Enquanto a Europa beija no ar e troca olhares de admiração consigo própria, as outras potências já avançaram com investimentos massivos em inteligência artificial, energia limpa, semicondutores e inovação industrial. O que para nós é debate conceptual, para eles é já competitividade real. Draghi sonhou alto, mas o sonho continua preso nos corredores de Bruxelas.
Talvez um dia acordemos para a urgência e percebamos que os moinhos de vento eram, afinal, gigantes de carne e osso. Até lá, a Europa continuará no papel de Dom Quixote: a lutar mais contra a sua própria inércia do que contra os verdadeiros inimigos que nos afastam da liderança global.
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